sábado, 15 de março de 2014

Fendas na caixa


Estava eu voltando para casa depois do trabalho. Às 5 horas da tarde o sol já não era tão agressivo. Ele estava mais observando calmo, prestes a se despedir. As ruas estavam lotadas e cada indivíduo corria para seu lado. Muitos rostos desconhecidos que sempre evitam uma boa tarde ou algo gentil jorraram de dois ônibus semi-velhos. Minha casa fica só a 3 quadras, então caminhar não é problema. Os prédios já se alongavam no chão em forma de penumbra. Um grupo de crianças corria e saltitava com balões de ar nas mãos, daqueles que desejam arduamente subir para a imensidão do céu. Esbarrei com uma ruiva que estava digitando no celular, pedi desculpas e ela ainda me xingou. Continue o percurso, mas hoje decidi tomar um atalho, um beco estranho e escuro que sempre era evitado. Havia marcas de sangue pelo chão e recuei um pouco, mas algo me atraía para aquele lugar. Estranho. Aquela rua era palco de uma feira de camelôs meses atrás, antes da policia proibir. Mas nunca passou pela minha cabeça o que poderia ter acontecido ali. Enchi o pulmão e segui em frente. A quem eu estava enganando? Estava morrendo de medo. Mas já havia percorrido a metade do caminho, não ia voltar agora. Já teve aquela sensação de está sendo seguido? Pois bem. E não era só impressão. Eu estava sendo seguido. Ok. Calma. Continuei andando e acelerei o passo, pelo menos tentei, estava tremendo de nervoso. Olhei para trás de relance e não havia ninguém. Ufa. O resto dos 100 metros foi moleza. 

Joguei minha mochila no sofá e fui em direção a geladeira que estava semi aberta. Achei estranho. Mas me assustei mesmo quando ouvi a tevê do quarto ligar. Soltei um grito de pavor, pois o volume estava altíssimo e foi tão repentino. Não havia ninguém em casa então deve ter alguma explicação, pensei eu. Foi ai que resolvi ir lavar o rosto na pia, devia ser o estresse que estava mexendo comigo. Eu devo ter programado o despertador da televisão e esquecido. Entrei no banheiro do térreo e a luz piscou duas vezes até acender. Caramba. Senti a mesma sensação horrível de está sendo observado. Olhei lentamente ao redor e nada. Um frio subiu na espinha. Não havia ninguém. Mas algo me deixou louco e apavorado ao mesmo tempo. Observei que no enorme espelho era possível ver uma sombra de um rosto no box. Virei instantaneamente e quase surtei, ou melhor, devia está surtando. 

Nada de novo. Já era possível sentir meu coração bater freneticamente na minha caixa torácica. E ao olhar novamente para o espelho vi um rosto deformado e aterrorizante. Os olhos eram de um vermelho intenso e não havia boca onde devia. Parecia mais uma fumaça densa. Era possível sentir sua respiração logo atrás de mim. A luz começou a oscilar, ameaçando-me jogar numa escuridão com aquilo. Corri para o corredor. O banheiro continuava piscando, semelhante a uma discoteca. Percebi que a televisão já não estava ligada. Mas a geladeira estava aberta e distingui três pegadas de sangue no chão. Estava suando frio e com as pernas frouxas, pensava que iam desabar. Senti um calor de uma mão tocar em meu ombro e paralisei de terror. Minhas células gritavam para eu correr ou fazer algo, mas simplesmente não consegui. Se passaram eternos 2 ou 3 segundos e já não sentia nada em minha pele. Foi então que escutei um gemido estridente e assombroso, como de um bebê chorando, mas parecendo com uma fita velha que estava engasgada. Minhas mãos gelaram e meu coração tentou saltar pela minha boca. Mas o que diabos estava acontecendo?! Que som demoníaco era aquele? De onde vinha? Havia alguém no banheiro?... 

O grito cessou e ainda não conseguia me mover. Segundos depois o telefone tocou e gritei de susto novamente. Fui desesperado atendê-lo, pensei que fosse um de meus amigos. Mas quando atendi só era possível ouvir uma respiração rouca e pesada, semelhante a que ouvi no banheiro. Joguei o telefone no chão e corri para a porta da frente. O caminho parecia longo demais. O ar estava pesado e sentia o pulsar de minhas artérias no meu crânio. A porta ficava cada vez mais distante e uma espécie de força me puxava, assim como um ímã. Eu queria gritar mas não saía som da minha garganta. As janelas começaram a bater incansavelmente e sussurros eram ecoados pela casa. Essa força ou sei lá o que continuou me segurando e me arrastando para o banheiro de onde avistei um breu sem fim. Como se não existisse mais nada depois da porta. Agarrei-me em cada lado da parede que delimitava a entrada. E novamente senti não uma, mas várias mãos e garras me tocando e me levando para as trevas...

De repente abri os olhos e pude ver um jovem rapaz em um banheiro elegante. Ele parecia está assustado ou nervoso. Não era possível vê-lo com clareza, afinal eu estava vendo através do box do chuveiro. Quando menos esperei ele se virou abruptamente para mim e fiquei horrorizado. Vi que estava pálido e suando. Mas o que me deixou louco era que aquele era eu, aterrorizado olhando para mim mesmo. Pouco depois ele (ou eu) saiu correndo pela porta do banheiro... Me senti estranho, ainda no box com suas luzes piscando, lembrei de ter visto esse mesmo rapaz em um beco estranho mais cedo, eu seguia ele, mas não sabia o por quê. Lembrei de ter ido até a geladeira quando cheguei. Mas vi alguém estranho saindo correndo do banheiro e lentamente toquei em seu ombro, mas não consegui fazer nada. Então comecei a gritar com ele, minha voz estava estranha. Não sabia como, mas aquele era eu e depois de um tempo, ouvindo fortes sussurros, estava sendo arrastado novamente para a escuridão do cômodo.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Lugar nenhum


Sob a cama desarrumada, embalsamada na penumbra, jaz um portal o qual apenas se abre no deitar do sol. Sob as peças de madeira que compõe o piso há frestas que exalam o cheiro das trevas. Descendo as camadas do solo, transpassando o centro da terra e rompendo a membrana da realidade há um lugar que humano algum ousou imaginar. Nesta terra de ninguém, todos são donos. Todos compartilham. No mais obscuro do universo habita o mais profundo medo da alma do homem. Criaturas grotescas se contorcem de horror ao próprio lugar. Demônios espreitam nas fendas. Fantasmas gritam de agonia e restos de membros se rastejam na lama ensanguentada. Não há luz. Não há dia. A senhora Morte governa de seu trono de crânios no alto de uma colina e brinquedos semi-deteriorados agem à seu favor. Corvos gigantes são responsáveis por arrancar a carne podre de fetos jogados ao relento. O inferno inveja tamanho desespero. 

A cada piscar de olhos o chão do abismo treme e do pó fétido surge novos inquilinos da dor. Novas criaturas, novos objetos, novas almas. Simultaneamente seres desabam em cinzas e retornam ao nada. E por toda a eternidade assim permanece, a moldagem e sepultamento de algo que um dia fora criado no berço da inocência. 

Todo sonho, personagem, criatura ou pesadelo um dia criado na mente humana tem seu final selado no esquecimento. Eis que objetos, animais e brinquedos que pertenceram ao seu dono aqui já não encontram utilidade. É aqui que vivem todos os planos e desejos que foram abandonados. Todo mundo o cria e o destrói incansavelmente. 

Não há saída no país esquecido. Apenas uma porta de entrada, a mais poluída e desprezável que pode existir, a nossa mente.