sábado, 6 de agosto de 2016

Inocência


Uma chave jogada em um terreno baldio reluziu em meio aos montantes de lixo e ferragens velhas. Logo chamou atenção do pequeno garoto que ali brincava com um gato de rua. De pelos cinzas e manchas pretas, pulava e corria seguindo um velho chaveiro no formato de cruz amarrado em um barbante encardido. O menino de repente suspendeu seus movimentos circulares e com isso seu amigo também se aquietou. 

Uma moeda nova que viera com o ultimo carregamento de ferro velho, o jovem deduziu. Imaginou também o que seu amigo quadrúpede estaria pensando, em um brinquedo novinho quem sabe. 

Mas isso seria muito estranho nessas redondezas, afinal, há décadas nada isento de ferrugem ou sujeira chegava àquela região esquecida pelo tempo, sua mãe lhe dissera certa vez. A curiosidade então falou mais alto, teria que verificar antes de voltar para casa. Enrolou seu barbante velho e o colocou com cuidado no bolso de trás da calça surrada. E pediu para seu colega: - Você poderia ficar um momento aqui e servir como vigia, caso alguém apareça? 

Um olhar semicerrado e uma cabeça pendendo para o lado esquerdo foi sua única resposta. E de alguma forma o menino concluiu que aquilo era um “sim”. Como alguém que acaba de fazer um trato, apertou a pequena pata direita do animal e sem mais delonga virou-se para a enorme pilha. Poderia levar horas, dias ou até mesmo anos para galgar toda aquela quinquilharia, pensou. Mas não se deteve, começou a pular e escalar vendo os inúmeros objetos ao longo do caminho e imaginando que história tudo aquilo contaria se soubessem falar. 

“Como fui feliz percorrendo longas estradas, disse o pneu velho”.

“Sinto falta de manter os vegetais fresquinhos, resmungou a geladeira”.

“Amava como todos brigavam só para olharem para mim, regozijou a antiga TV”. 

E assim sucedeu a trajetória do pequeno garoto, apesar de estar em um local relativamente alto, sua mente voava milhas acima daquela planície. 

Alheio à emoção do garoto o gato partiu sem rumo para a direção oposta. E destemidamente a escalada continuou vez ou outra sendo interrompida por uma rajada forte de vento carregando poeira. 

Contudo houve um momento em que um computador velho desabou com a força da pisada do garoto fazendo com que o mesmo também caísse, despencando 27 metros, até atingir com força o solo com pedregulho. Nesse ínterim quinas e lanças enferrujadas fustigaram o menino sem nome fazendo cortes profundos, um deles acertando fatalmente o pescoço do pobre indivíduo. E sem mais nem menos, poucos segundos depois só havia um corpo sem inquilino, jogado ao acaso. Sua mente continuou a subir sem parar, pensando que atingiria o teto do mundo, enquanto sua antiga moradia era encoberta por terra. 

Ninguém nunca saberia, mas a criança havia morrido em paz pensando ter alcançado a chave que a tiraria daquele mundo infeliz.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Insanidade


Subi na minha bicicleta e pedalei arduamente sem sequer espiar o que eu deixava para trás. Estava cansada disso, não ia suportar por muito tempo mesmo, eles deviam saber que não. O som meio opaco dos pneus atritando e impulsionando o mundo para o passado chega aos meus ouvidos como um clamor de alívio, de uma momentânea segurança. O ar quente queimando meus pulmões a medida que escapa por entre meus lábios dolorosamente escarlate. Meus músculos doem, mas não sou capaz de parar e pensar nisso me deixa enjoada. Olho pra o horizonte que me encara de volta, utópico e indiferente aos meus sentimentos. Mesmo assim insisto em voar para ele, no entanto, casas, automóveis e pessoas brotam do solo afastando a tênue linha para mais longe. 

Felizmente a atenção em desviar dos veículos reprime as cenas que sei que não esquecerei. Eu realmente não faço ideia que aparência apresento no momento, mas olhos curiosos e assustados me fuzilam sem pudor. Seria tudo tão simples se eu pudesse simplesmente voar ou quem sabe sumir. Morrer. 

Morrer.

Isso sim pode ser bem manejado com uma simples mudança angular do guidão. Estou vendo uma camionete crescendo há alguns metros e o fato de estar na contramão só faz encandecer o pensamento malicioso. A luz queima minhas retinas e fico cega temporariamente. Fecho os olhos sem pensar em tocar nos freios. 

Buzina. Gritos.

Ainda estou viva. Uma notícia que não me deixa mais aliviada. Ao pensar para onde estou indo sinto-me aterrorizada pois não tenho destino certo. 

O barulho abafado do músculo cedendo à medida que eu pressionava a lâmina contra o estômago dela ainda ecoa em minha cabeça. “Uma pobre garotinha” é o que imagino que sairá no jornal local. Minha roupa ainda exala o fétido cheiro de suco gástrico e minhas mãos estão pegajosas devido o suor e o sangue ressecado. Ela devia ter em média 12 anos, mas jamais me enganara com aquela carinha de anjo. Meus longos cabelos estão emaranhados e levemente amarrados com uma liga de plástico, a mesma que usam para separarem notas de dinheiro.

As sirenes piscam a centenas de metros atrás e imaginar passar o resto da vida na cadeia não é nada animador. Eu fiz o que me disseram. Fiz o que as vozes mandaram. Aquela estúpida garota mordeu a orelha do meu querido filho. Fiz o que tinha que fazer. O que todas as mães protetoras deviam fazer. 

Nesse momento eu só quero chegar no horizonte e pedalar sob o arco-íris. É minha recompensa, minha vitória.

Fiz o que meu filho não teria coragem de fazer. Ele é muito novo e agora vai crescer em paz com seu pai. 

Eu fiz o que devia fazer. 

E assim sigo com o fervor da adrenalina rasgando meu corpo. Estou mais perto das cores fortes. Mais perto do inalcançável. 

E assim vou, em paz, pois fiz o que devia fazer.