Em uma tarde normal de verão Clarisse estava sentada na janela de sua casa. A chuva batia e escorria pelo vitral da janela soando como uma música aos ouvidos da garota que lia um livro de aventura das terras médias. A luz do quarto estava acessa, seu gato dormia na cama e de tempos em tempos Clarisse bebia um pouco de chocolate quente com pedaços de marshmallows, de um jeito que só as mães sabem fazer.
Abruptamente essa atmosfera acolhedora foi destroçada com o romper violento de quatro homens encapuzados invadindo seu quarto. De longe era possível escutar os gritos de pavor de sua mãe, algo que despertou o desespero da jovem. O pequeno gato preto correu para debaixo da cama e Clarisse arremessou longe a caneca com a bebida quente, quão grande foi seu susto, molhando todo o tapete. Os homens ostentavam no peito o símbolo da segurança da cidade. Além disso, máscaras de oxigênio acrescentavam um ar macabro, somado às inúmeras armas e facas aderidas na roupa escura. O que parecia um assalto na verdade era uma missão, um dever do Estado.
Com uma voz rouca e tremulada, um suspiro no fundo, um dos caras disse:
- Moça, você está violando uma lei séria e pagará por isso!
Clarisse só conseguiu soltar um suspiro de medo e desentendimento. Dois dos “seguranças” a agarraram e os demais fizeram uma completa varredura no cômodo. Não estavam procurando drogas ou armas, mas livros. Sim, livros. Pegaram todos os que encontraram, didáticos, literários, de culinária, todos. A incursão não fazia o menor sentido à pobre garota que não sabia se devia manter a calma ou gritar quando a voz da mãe se perdeu no calor da situação. Por alguns segundos houve silêncio no recinto, sendo possível escutar somente a chuva juntamente com o pulsar acelerado do coração de Clarisse. Então a garota foi jogada no chão e os outros deixaram o quarto.
Na rua, agora era perceptível, muita gente estava correndo aflita, sendo perseguida pelos mesmos mascarados assustadores. Ao correr à sala, a menina não encontra sua mãe, apenas a porta arrombada e uma terrível vista da vizinhança. Nas calçadas estavam espalhadas latas de lixo, jovens chorando sem parar, muita correria. De longe era possível ver a “crista” de uma enorme fogueira e bastante fumaça. Assustada, Clarisse só pode imaginar que havia ocorrido algum atentado ou algo semelhante. Sem saber o que fazer decidiu ligar para seu amigo Luan.
- Hey Luan! Você sabe o que está acontecendo? Por favor, minha mãe desapareceu... O que está havendo?!
Choro.
- Calma Lisse! Sei que é terrível! Você viu o que anunciaram no jornal? Mas o que diabos deu neles?!
- Haa meu Deus!... O que anunciaram?
- Há mais ou menos uma hora os presidentes de todos os países, depois de uma conferência, acabaram por decretar uma lei que vai contra todo e qualquer tipo de livro, a não serem avisos ou ordens dos superiores. Acredita?
- É o fim do mun...
Repentinamente todas as linhas telefônicas, de TV e de internet foram cortadas. O mundo estava Off. Agora só restava lugar para o desespero.
Clarisse correu muito, não sabia ao certo para onde, mas correu. Decidiu então seguir a fumaça. Ao chegar ao centro da cidade o choque foi tão grande ao ver tal cena, que para ela o que mais lhe convinha era chorar. Uma pilha gigantesca de livro estava sendo queimada. As chamas consumiam as capas duras, os Best Sellers, os grandões, os pequenos, centenas, milhares de livros devorados não por leitores ávidos, mas pelo fogo. Para alguns não parece muita coisa, mas para os leitores como Clarisse, aquela cena é digna de revolta, raiva e tristeza.
Era possível ver inúmeras histórias carbonizadas. As palavras subiam com a fumaça e caíam como cinzas de vulcão, sem vida, sem cor. Era horrível ver Nárnia queimar; Alice gemer de dor; o lobo mal despelar com o calor; Shangri-La derreter; impérios ruírem. Nada podia ser feito. Eis que a humanidade estava atada às cordas de sua própria condenação.
Clarisse sentou na estrada e aos prantos viu seus personagens favoritos estalarem na brasa da fogueira. E assim ficou por horas, aturdida às coisas ao seu redor. Vez ou outra, soldados descarregavam vários caminhões de livros, alimentando o fogo e a comoção dos que ali estavam prestando certo tipo de respeito. Cansada de tudo a jovem adormeceu no local.
E foram se passando os dias, Luan encontrou a amiga e a acolheu. Muita gente havia sido sequestrada, na verdade, somente os escritores para que não mais escrevessem coisa alguma. As ruas estavam vazias, o céu perdera a cor, as folhas das plantas viraram cinzas. Sem comunicação o mundo voltou as suas origens. Os seguranças continuavam a trabalhar, prendendo e até matando quem ousasse escrever. Às palavras foram lhes tiradas a liberdade de voz. O planeta outrora azul, agora variava do preto ao cinza.
Transcorridos três meses do grande “holocausto”, os mares e rios haviam secado até a última gota. Os animais não mais existiam, a vida se fora juntos com os livros. Não restaria muito para tudo não passar de uma história que não poderia ser contada a mais ninguém.
Clarisse e Luan estavam a andar pelo deserto, antes conhecido como lago Cristal. Inesperadamente a terra começou a tremer. E a cada momento os tremores só aumentavam, derrubando os prédios e casas na cidade. O casal foi arremessado no chão. Logo, este ganhou grandes riscos. Fendas enormes foram abertas e delas saíam jatos de magma, com uma cor vermelha linda. Os meninos foram engolidos por uma cratera e a cada metro da queda era possível sentir a pele borbulhar até...
Suada e assustada Clarisse desperta, há pouco terminara de ler o livro que ganhou de Luan. Na capa dura estavam estampada as palavras, “Páginas do além”.
- Foi um bom livro, com certeza.