quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Dia Difícil


Acordei cedo como todos os dias. Tomei banho, escovei os dentes, comi e escovei os dentes de novo. Estava abrindo a porta da minha casa quando uma mosca entrou na minha boca, em um pequeno gesto de bocejar. Foi desesperador, tossi até me livrar do inseto nojento. Até agora nada de mais havia acontecido, era um dia comum. Estava mais frio do que o normal, mas nada estranho. No caminho até a parada do ônibus escolar passavam-se inúmeros rostos diante dos meus olhos. Olhares fadados e cansados, até intrigantes.

Ao dobrar a segunda esquina do quarteirão um senhor que dirigia um carro descascado e mal cheiroso se jogou contra a calçada quase me atingindo. Fiquei pasmo, meu coração acelerou e minhas pernas tremeram. Foi uma surpresa e tanto quando observei e notei que o senhor tinha seus olhos liquefeitos em uma gosma preta que eu tinha certeza que não era sangue. Também não fui idiota de verificar com precisão. Apenas me afastei e segui o meu percurso. Eu devia ter verificado se o senhor estava vivo, se precisava de ajuda ou ligado para a emergência. Mas o que diria? “Alô, tem um senhor sem os olhos que estava dirigindo um carro e quase me atropelou!”. Preferi seguir meu caminho, ainda muito assustado e agora perturbado por aquela cena terrível. De repente senti o ar mais denso, estava difícil de respirar e o céu agora escurecia pouco a pouco cada vez mais. Pensei “é o fim do mundo” e meu coração gelou novamente. Eu só queria ir para a escola e esquecer aquilo, não podia ser real. Mais alguns passos e tropecei em meus próprios pés, o nervosismo tomava de conta. Sempre assisti filmes de terror, mas não sabia o que fazer caso estivesse é um. Não podia simplesmente gritar e correr, talvez aquilo estivesse só em minha cabeça, mas como isso explicaria o senhor no carro. Pânico. Pavor! Agora as nuvens cinzas davam lugar a enormes massas negras, tão negras que o dia se desfez em um crepúsculo instantâneo. Ok, agora sim eu corri. Não era um céu que precedia a chuva, mas sim que antecipava o fim, assim como nos filmes.

Ao chegar à parada vi vários alunos sentados e cabisbaixos. “Como podem estar tão calmos?!” pensei. Corri na direção dos meus amigos e todos estavam quietos e calados, até sangravam pelo nariz. Gritei e esperneei mostrando a escuridão celeste e falando do fato ocorrido com o senhor do carro, mas eles pareciam estar distantes, não me ouviam ou fingiam que não me ouviam. Lancei-me aos prantos e a cada segundo aumentava a dificuldade de respiração. “Devo estar louco”, era a única explicação plausível nesse momento. Parei um momento e percebi que havia mais umas quatro ou cinco pessoas apavoradas, não pensei em contar. Porém em suas faces estavam estampadas medo, desespero e aflição. Ao mesmo tempo senti uma onda de alívio e pavor, sabia que não estava só. Depois de longas passadas cheguei a uma garota em prantos. Não sei ao certo por que, mas ela gritou a me ver e seu grito era tão estridente que meus tímpanos se agitaram com força. De sua boca só saía gemidos e ao ouvir minha voz tremia de dor, ao menos aparentava isso. Meu coração quis parar e não sei o que o levou a desistir, mas o pavor só fez aumentar. Agora o céu acima de nós estava desabando em carmesim. Uma cor tão forte e escura que a meu ver parecia sangue. Logo me vi encharcado do líquido vermelho, “só pode ser sangue!”.

Momentos depois eu ouvi um barulho leve e peculiar, era o meu ônibus que andava lentamente. Se não estivesse acordado diria que andava em câmera-lenta. Os zumbis estudantes entraram um após o outro, sem pressa. Eu já não sabia o que fazer. Segui a fila e entrei no veículo que parecia mais uma sucata. Minha mente estava se contorcendo de insanidade, não entendia nada, aquilo não podia ser real. Em silêncio e todos sujos, do que acredito ser sangue, seguimos a viagem. Mesmo estranhos todos pareciam egoístas e só olhavam para seus próprios umbigos, literalmente. Pela janela vi aqueles outros jovens desesperados os quais eu não podia ajudar e eles também não me eram úteis para compreender tudo aquilo. O caminho não era longo, mas o tempo parecia se arrastar. A escuridão agora estava regredindo. Agora podia avistar a escola distante. Ao entrar me deparei com uma prisão, sim, uma prisão, com correntes e grades e carrascos ambulantes. Eram todos zumbis. Ninguém podia me ouvir ou me entender. Apesar de gritar e chamar atenção parecia invisível aos outros. Agora uma mosca na garganta não parecia tão ruim assim.

E assim se foi o meu dia, um dia quase comum. Ao final da tarde, ao cair da noite, volto para casa. Tropeço em uma pedra. Arranho meu braço na parede. Mordo minha língua. Sujo minha roupa. Um dia difícil. As coisas voltam ao normal e o que me aguarda para o dia seguinte é um mistério o qual não anseio descobrir.

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